Pular para o conteúdo

A história é antiga, vocês sabem.

Dizem que a velha apontou com seu ibiri a lama no fundo de um lago. Depois de tentar fazer gente de ar, azeite, água e vinho de palma, só então o velho entendeu a velha e nos modelou do barro.

Nossa gente é feita de terra, vocês sabem. 

E com a terra nos traçamos no mundo. Se queriam poeira apagada, nós firmamos e marcamos o passo do chão em sua vontade de voar. 

Feito rocha, contra o tempo.

Fincamos raízes nas estrelas para que a terra repetisse a quem viesse depois: eu já estive aqui antes.

Eu já estive aqui antes, vocês sabem.

Cachoeira é o território porto, raiz e margem, um chão que guarda em si o gesto de germinar vida. Já foi chamada de “inversão do mundo”. Na beira do Paraguaçu, onde tantas histórias atravessaram o Brasil, foi e é centro e fluxo de mercadorias, culturas, resistências e sonhos. 

Como o país pode ser repensado a partir das histórias dessa terra? Que Brasis se avistam a partir das frestas dos tempos de Cachoeira?  

Como desencavar novos jeitos de estar juntes, assentades no contraponto da nação e suas múltiplas camadas de memória, luta e criação?

Essa terra já falou. Vocês sabem. Escutem. 

Se modelados do barro, as imagens que produzimos forjam raízes que retraçam histórias e rizomas de mundos em todo e nenhum lugar. Filmes são margens em movimento, e Cachoeira, como território, conecta-se a outras margens do mundo, atravessando fronteiras e desafiando seus limites. A margem é violenta para quem não comunga. 

Em nossas mãos, margens são espaços de deslocamento e reinvenção.

Daqui não reivindicamos centro em cartografias estrangeiras, mas germinamos desde nossas ruas, nuvens de possibilidades impensadas. O que faremos aqui é um convite para fabular o mundo sem sair do Caquende.

Você vem?

Na terra do samba de roda, traçamos círculos de pés descalços. Voltamos para lembrar o que nunca saiu da terra. 

Porque o negócio é inegociável, vocês sabem: o chão que se é entranhado ao chão que se pisa.

Foi assim que ela, a terra, insurgiu-se como conceito-mote desta edição. Foi assim que a formação novamente se esparramou enquanto raiz forte do nosso novo encontro. Assistir filmes juntes nas ruas, dividir a praça, a comida, as vivências. É um encontro onde o cinema desafia o terror e afirma radicalmente a vida. Borrando as fronteiras entre universidade, comunidade e território, moldamos uma escola aberta de cinema terra. Voltamos com os desejos de realização da EscolaDoc: um ramo do festival que chega emaranhando oficinas formativas, conferências entre coletivos, sessões ao ar livre e encontros das pedagogias Cachoeira-mundo. De margem para margem. 

Retomamos este festival de filmes urgentes, de lutas, de fabulação: de documentários. O documentário como terra e território que nos joga coletivamente diante dos Brasis em disputa. Em coletivos, corpo-performance, ciclos, cinema-debate e o se debater com o cinema: muitas formas de enquadrar as imagens a partir de Cachoeira e de ler e reinventar o Brasil. Mais uma vez.

A terra já te ensinou, você não lembra?

Dez raízes. Dez edições em que filmes viraram outros filmes, reimaginando suas próprias narrativas no contato ético com a terra, na voz de espectadoras que tomaram a palavra para partilhar uma experiência, radicalmente singular e coletiva, de ver junto. 

E se a velha nos deu o insumo do começo, vocês sabem, ela quer de volta o que é seu. 

Por isso voltamos, com o ouvido rente ao chão, para anunciar o que a terra pede:

  • EscolaDoc – Ciclo Formativo em Documentário
  • CachoeiraDoc – Festival de Documentários de Cachoeira

10ª raiz

Junho de 2025